Em épocas de crise e discórdia, muita gente se ocupa em abrir portas para a desgraça. O pior é que quem se presta a esta ocupação não percebe que está agindo assim; alguns até pensam que estão fazendo o contrário. Uma dessas portas foi aberta terça-feira, quando deputados federais, em comissão especial, aprovaram projeto que na prática revoga o Estatuto do Desarmamento, em vigor desde 2003. Tão acintoso é o retrocesso que ontem o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fez questão de gravar e divulgar vídeo em que considera a votação “um escândalo” e pede que os “deputados a derrubem em plenário”. Vejam só algumas modificações criadas pelo novo texto:
1) Fica criado o “porte de armas rural”: proprietários de terra terão direito a andar armados nos limites de suas propriedades
2) Deputados e senadores ganham direito ao porte, assim como advogados da União, integrantes do Ministério Público, oficiais de Justiça. Também dá o direito de agentes de trânsito e de medidas socioeducativas trabalharem armados e de policiais legislativos da Câmara e Senado viajarem armados em aviões quando estiverem escoltando parlamentares
3) Cai de 25 anos para 21 a idade mínima para compra de arma
4) Acaba a proibição de que pessoas que estejam respondendo inquérito policial ou processo criminal adquiram armas. A proibição passa a valer apenas para os condenados em crimes dolosos (aqueles praticados intencionalmente)
5) A validade do porte passa a ser de 10 anos (hoje é de três anos, prazo após o qual precisa ser renovado)
6) Hoje a autorização e registro do porte de armas são exclusividade da Polícia Federal; o novo texto amplia o direito também para os órgãos de segurança dos estados
7) Na prática, estende para qualquer pessoa o direito de ter uma arma, estabelecendo como condicionante que ela “ateste com documentos e laudos ter capacidade técnica e psicológica para o manejo e uso da arma a ser adquirida”
E ainda não acabou. Na próxima terça-feira (dia 3), serão votados 11 destaques restantes. Entre eles a reinclusão do direito de porte a taxistas e caminhoneiros. A desgraça só não está consumada porque este novo texto – que oficialmente se chama “Estatuto de Controle de Armas de Fogo”, em substituição ao Estatuto do Desarmamento – precisa passar pelo plenário da Câmara de Deputado e depois pelo Senado. Se aprovado nas duas casas, vai para sanção ou veto da presidente Dilma Rousseff.
“Estamos devolvendo ao povo o seu direito de legítima defesa”, afirmou o relator, deputado Laudívio Carvalho (PMDB-MG), em frase tão infeliz quanto o seu relatório. Pesquisa da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) constatou que o fato de uma pessoa estar armada durante um assalto, por exemplo, aumenta em 88% a chance de ser agredida. Outro estudo, o “Mapa da Violência 2015: mortes matadas por armas de fogo”, divulgado em maio passado, informou que mais de 160 mil vidas foram poupadas no período entre 2004 e 2012, na vigência do Estatuto do Desarmamento. O “Mapa” foi realizado pela Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais, em parceria com a Unesco. Chegaram a este resultado comparando o total de mortes esperadas (de acordo com as estatísticas anteriores) com as que ocorreram.
Também há estudos da USP, FGV e PUC-Rio atestando que quanto maior a disponibilidade de armas de fogo nas cidades, maior a taxa de homicídios. Não reduzem a incidência de roubos e furtos, aumentam a oferta de armas que podem ser roubadas por criminosos e criam a possibilidade de desentendimentos cotidianos (domésticos, no trânsito, no trabalho) terem desfecho fatal para os envolvidos. O secretário de segurança pública do Rio, José Mariano Beltrame, por exemplo, disse que o novo estatuto, se virar lei, será um “retrocesso”.
O relator Laudívio Carvalho está no cargo por indicação de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), presidente da Câmara, que tem colocado em pauta os temas defendidos pelo que o noticiário da imprensa chama de “Bancadas BBB” (bala, boi e Bíblia, que seriam as bancadas de segurança, ruralista e evangélica). Em momentos de crise e discórdia, medidas que contrariam noções de civilização – como este Estatuto de Controle de Armas de Fogo – podem até ser aprovados e virar lei. Para impedir esse tipo de coisa, é fundamental a reação dos que veem que, em vez de uma medida positiva, o que se está fazendo é abrindo portas para a desgraça. Reagir como fez ontem Fernando Henrique, cujas palavras deixo aqui como conclusão deste artigo: “O Estatuto do Desarmamento foi uma construção política feita com a sociedade e teve efeitos, reduziu o número de mortes, que continua sendo absurdo. Como é que vamos agora derrubar esse estatuto e permitir que pessoas, até criminosos, tenham, legitimamente, armas? Isso é um escândalo”.